domingo, 24 de janeiro de 2016

Espelho


Era um vazio que não tinha explicação, daqueles que a princípio ninguém tem. Mas ela insistia em buscar, porque de fato lhe incomodava. Quando adolescente, isso lhe custou a neurose, uma loucura, nunca completamente superada. Precisava de mais, sempre mais. Em pouco tempo tudo lhe aborrecia. O sapato novo perdia o encanto, a roupa nova parecia não ter um bom caimento, o trabalho prazeroso tornava-se enfadonho. Tudo perdia o brilho, perdia a cor.
Mas era jovem, bonita, portanto, tinha alguns trunfos que davam sentido à vida. Uma nova diversão, um novo prazer, uma fonte de satisfação quase que inesgotável. Mas com prazo de validade, um prazo relativamente curto para o tanto de vontade e vazio a preencher. Cada flerte, cada conquista, parecia saciar uma sede de ressaca. Mas a certeza do amor correspondido lhe trazia o tédio, e o tédio lhe lançava novamente à caça. Queria usar da sua juventude enquanto havia tempo, enquanto esta não lhe escorresse como água perdida pelo ralo. Temia a putrefação do corpo que a idade inevitavelmente traria. Temia que a flacidez da pele, o hálito envelhecido, repelissem outros corpos do seu. Corpos estes que antes a desejavam.
Ao olhar no espelho, examinava-se minunciosamente enquanto esfoliava, hidratava e se enchia de produtos anti-idade. Se a juventude lhe corresse o ralo, como a água de suas mãos escorria, sabia que em seu rosto abririam flancos, dobras, ranhuras e, com isso, seu olhar despertaria no máximo ternura, afeição ou piedade, nunca desejo. Por isso era promíscua, por lutar contra o tempo, para se saciar do que lhe restava da juventude.
Mas sabia que esse subterfúgio não funcionava frente ao problema central, frente ao vazio. Era um preenchimento temporário, fugaz. E o pior de tudo, operava como uma ampulheta, dia a dia havia menos areia, menos dados para jogar. A velhice assombrava. Aprendeu desde a infância que o segredo para fugir do vazio era o amor, alguém para lhe completar, envelhecer junto e compartilhar as alegrias e tristezas da vida. Parecia interessante, a princípio. Mas conforme as pessoas crescem, nada é mais tão simples, o mundo se complexifica. E se você tiver uma mentalidade demasiado cartesiana, planejadora e calculista, as probabilidades parecem apontar que esta é uma má aposta. Era o caso dela. Pensava em quantas pessoas de idade viveram vidas infelizes ao lado de suas supostas “almas gêmeas”, quantas procuraram sem nunca desenvolver um relacionamento, quantas perderam seus amores pelo caminho e tiveram que se defrontar com a solidão. Ok, havia uns casos bem-sucedidos, mas como pessoa que pensa no futuro, as estatísticas eram insatisfatórias, parecia um investimento com poucas probabilidades de retorno. A pergunta continuava sem resposta.
Mas mesmo a razão dizendo que não valia a pena, tinha momentos em que a ilusão de uma fusão com outro ser parecia fazer sentido. Não era comum, mas também não era raro ela se apaixonar em meio às suas conquistas. Nesses momentos era difícil refletir sobre as causas do vazio. Nesses momentos, em verdade, era difícil refletir sobre qualquer coisa, pois tudo o que havia era o medo do vazio e o desejo de preenchê-lo todo de uma só matéria, de um só ser humano. Mas passava, sempre passava, e como tudo o que havia desejado, se esvaía o encanto.
Em geral, nos apaixonamos por quem admiramos. Foi refletindo sobre isso que um dia ela concluiu que a causa das suas fortes paixões, de seus arrebatamentos, vinha de um desejo de possuir determinadas características. Era como uma vontade enorme de ver num espelho aquilo refletido em si, mas não podendo, projetava aquela imagem em outra pessoa. Mas era só uma imagem irreal, tão logo vem a noite e esfria, a miragem vai-se embora e fica a realidade. Assim, ela percebia que aquilo com o que desejava se fundir não existia, portanto, não podia se completar, preencher o vazio fundindo-se com o outro.
Assim, essa teoria apontava para uma nova: unir-se a alguém não era a solução para a definitiva satisfação pessoal e felicidade, era preciso envidar todos os esforços para ser aquilo que se deseja. Queria olhar no espelho e se orgulhar do que via. Não apenas carne e osso, mas tudo, talento, sucesso profissional, vida sexual, amizades interessantes. Só assim seria completa. Mas não, não era possível, ninguém pode conseguir tudo. A aposta então era distribuir a satisfação em várias áreas da vida o máximo que pudesse. Descobriu que se sentir amada, admirada, trazia um especial contentamento, um orgulho muito gostoso de sentir. Provavelmente era por isso que os flertes e conquistas marcaram os ápices de prazer de sua juventude. Mas agora tinha um novo plano, poderia superar a ampulheta do tempo, envelhecer não seria necessariamente o fim enquanto pudesse despertar afeição nas pessoas. Para isso não precisaria de beleza física, mas desenvolver seus talentos, investir seu tempo e atenção no cuidado com os outros.
Parecia funcionar, mas nem sempre. Sentiu-se estúpida ao confrontar o mais óbvio da sabedoria popular: é impossível agradar a todos, por mais que se esforce.
Ainda assim, os anos passam, e o plano provisório não foi tão ruim, teve certo sucesso ao implementá-lo. Sente-se uma pessoa relativamente satisfeita, pois o buraco do peito já não é tão impreenchível como parecia. Ela está com 45 anos agora, ainda bonita, ainda cartesiana, mas ainda sem a resposta definitiva. A última hipótese que passou a testar, encontrou no budismo: para interromper a insatisfação, é preciso interromper o desejo. A meditação seria a via, parar o pensamento seria o meio. Isto dava prazer, era bastante agradável. Mas logo viu que o desejo de não desejar também não era jamais preenchido completamente. Portanto segue, sentindo e racionalizando, racionalizando e sentindo, convivendo com o vazio, sem nunca de fato o aceitar, talvez uma vida não será suficiente para resolver esse mistério.


Mariana Penna, 2016.


9 comentários:

  1. Respostas
    1. Poxa, que bom que vc curtiu, achei que nenhuma viva alma tivesse lido! Rs! :)

      Excluir
  2. Tbm adorei ler. Foi como ler Freud em literatura.A cartesiana vivendo a SABER-DOR-RiA da incerteza.

    ResponderExcluir
  3. Tbm adorei ler. Foi como ler Freud em literatura.A cartesiana vivendo a SABER-DOR-RiA da incerteza.

    ResponderExcluir
  4. Gostei bastante, Mari!
    Muito legal a conclusão sobre os relacionamentos, que na verdade buscamos no outro aquilo que gostaríamos de ter em nós (e muitas vezes nos frustramos) para sentirmos completos. Gostei também da saída pelo budismo, desapegar do desejo.
    E vamos levantando hipóteses, encontrando soluções parciais, e vivendo! rsss (Também sou um pouco cartesiana)
    Um abraço!!

    ResponderExcluir