Era um vazio que não tinha explicação, daqueles que a
princípio ninguém tem. Mas ela insistia em buscar, porque de fato lhe incomodava.
Quando adolescente, isso lhe custou a neurose, uma loucura, nunca completamente
superada. Precisava de mais, sempre mais. Em pouco tempo tudo lhe aborrecia. O
sapato novo perdia o encanto, a roupa nova parecia não ter um bom caimento, o
trabalho prazeroso tornava-se enfadonho. Tudo perdia o brilho, perdia a cor.
Mas era jovem, bonita, portanto, tinha alguns trunfos que
davam sentido à vida. Uma nova diversão, um novo prazer, uma fonte de
satisfação quase que inesgotável. Mas com prazo de validade, um prazo
relativamente curto para o tanto de vontade e vazio a preencher. Cada flerte,
cada conquista, parecia saciar uma sede de ressaca. Mas a certeza do amor
correspondido lhe trazia o tédio, e o tédio lhe lançava novamente à caça.
Queria usar da sua juventude enquanto havia tempo, enquanto esta não lhe
escorresse como água perdida pelo ralo. Temia a putrefação do corpo que a idade
inevitavelmente traria. Temia que a flacidez da pele, o hálito envelhecido,
repelissem outros corpos do seu. Corpos estes que antes a desejavam.
Ao olhar no espelho, examinava-se minunciosamente enquanto
esfoliava, hidratava e se enchia de produtos anti-idade. Se a juventude lhe
corresse o ralo, como a água de suas mãos escorria, sabia que em seu rosto
abririam flancos, dobras, ranhuras e, com isso, seu olhar despertaria no máximo
ternura, afeição ou piedade, nunca desejo. Por isso era promíscua, por lutar
contra o tempo, para se saciar do que lhe restava da juventude.
Mas sabia que esse subterfúgio não funcionava frente ao
problema central, frente ao vazio. Era um preenchimento temporário, fugaz. E o
pior de tudo, operava como uma ampulheta, dia a dia havia menos areia, menos
dados para jogar. A velhice assombrava. Aprendeu desde a infância que o segredo
para fugir do vazio era o amor, alguém para lhe completar, envelhecer junto e
compartilhar as alegrias e tristezas da vida. Parecia interessante, a
princípio. Mas conforme as pessoas crescem, nada é mais tão simples, o mundo se
complexifica. E se você tiver uma mentalidade demasiado cartesiana, planejadora
e calculista, as probabilidades parecem apontar que esta é uma má aposta. Era o
caso dela. Pensava em quantas pessoas de idade viveram vidas infelizes ao lado
de suas supostas “almas gêmeas”, quantas procuraram sem nunca desenvolver um
relacionamento, quantas perderam seus amores pelo caminho e tiveram que se
defrontar com a solidão. Ok, havia uns casos bem-sucedidos, mas como pessoa que
pensa no futuro, as estatísticas eram insatisfatórias, parecia um investimento
com poucas probabilidades de retorno. A pergunta continuava sem resposta.
Mas mesmo a razão dizendo que não valia a pena, tinha
momentos em que a ilusão de uma fusão com outro ser parecia fazer sentido. Não
era comum, mas também não era raro ela se apaixonar em meio às suas conquistas.
Nesses momentos era difícil refletir sobre as causas do vazio. Nesses momentos,
em verdade, era difícil refletir sobre qualquer coisa, pois tudo o que havia
era o medo do vazio e o desejo de preenchê-lo todo de uma só matéria, de um só
ser humano. Mas passava, sempre passava, e como tudo o que havia desejado, se
esvaía o encanto.
Em geral, nos apaixonamos por quem admiramos. Foi refletindo
sobre isso que um dia ela concluiu que a causa das suas fortes paixões, de seus
arrebatamentos, vinha de um desejo de possuir determinadas características. Era
como uma vontade enorme de ver num espelho aquilo refletido em si, mas não podendo,
projetava aquela imagem em outra pessoa. Mas era só uma imagem irreal, tão logo
vem a noite e esfria, a miragem vai-se embora e fica a realidade. Assim, ela
percebia que aquilo com o que desejava se fundir não existia, portanto, não
podia se completar, preencher o vazio fundindo-se com o outro.
Assim, essa teoria apontava para uma nova: unir-se a alguém
não era a solução para a definitiva satisfação pessoal e felicidade, era preciso
envidar todos os esforços para ser aquilo que se deseja. Queria olhar no
espelho e se orgulhar do que via. Não apenas carne e osso, mas tudo, talento, sucesso
profissional, vida sexual, amizades interessantes. Só assim seria completa. Mas
não, não era possível, ninguém pode conseguir tudo. A aposta então era distribuir
a satisfação em várias áreas da vida o máximo que pudesse. Descobriu que se sentir
amada, admirada, trazia um especial contentamento, um orgulho muito gostoso de
sentir. Provavelmente era por isso que os flertes e conquistas marcaram os
ápices de prazer de sua juventude. Mas agora tinha um novo plano, poderia
superar a ampulheta do tempo, envelhecer não seria necessariamente o fim
enquanto pudesse despertar afeição nas pessoas. Para isso não precisaria de beleza
física, mas desenvolver seus talentos, investir seu tempo e atenção no cuidado
com os outros.
Parecia funcionar, mas nem sempre. Sentiu-se estúpida ao
confrontar o mais óbvio da sabedoria popular: é impossível agradar a todos, por
mais que se esforce.
Ainda assim, os anos passam, e o plano provisório não foi
tão ruim, teve certo sucesso ao implementá-lo. Sente-se uma pessoa
relativamente satisfeita, pois o buraco do peito já não é tão impreenchível
como parecia. Ela está com 45 anos agora, ainda bonita, ainda cartesiana, mas
ainda sem a resposta definitiva. A última hipótese que passou a testar,
encontrou no budismo: para interromper a insatisfação, é preciso interromper o
desejo. A meditação seria a via, parar o pensamento seria o meio. Isto dava
prazer, era bastante agradável. Mas logo viu que o desejo de não desejar também
não era jamais preenchido completamente. Portanto segue, sentindo e
racionalizando, racionalizando e sentindo, convivendo com o vazio, sem nunca de
fato o aceitar, talvez uma vida não será suficiente para resolver esse
mistério.
Mariana Penna, 2016.
muito bom ler!
ResponderExcluirPoxa, que bom que vc curtiu, achei que nenhuma viva alma tivesse lido! Rs! :)
ExcluirTbm adorei ler. Foi como ler Freud em literatura.A cartesiana vivendo a SABER-DOR-RiA da incerteza.
ResponderExcluirTbm adorei ler. Foi como ler Freud em literatura.A cartesiana vivendo a SABER-DOR-RiA da incerteza.
ResponderExcluirQue foda! Risos! Esse conto foi quase que um exercício de autoanálise mesmo, vc deve ter percebido! Risos!
ExcluirQue trocadilho genial! Amei!
ExcluirQue trocadilho genial! Amei!
ExcluirGostei bastante, Mari!
ResponderExcluirMuito legal a conclusão sobre os relacionamentos, que na verdade buscamos no outro aquilo que gostaríamos de ter em nós (e muitas vezes nos frustramos) para sentirmos completos. Gostei também da saída pelo budismo, desapegar do desejo.
E vamos levantando hipóteses, encontrando soluções parciais, e vivendo! rsss (Também sou um pouco cartesiana)
Um abraço!!
É, eu percebo que você também é dessas! Rs! Beijos!
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