terça-feira, 7 de abril de 2015

Adeus, muso!


Mais um dia de trabalho. Atender telefonemas e papéis... papéis para todo lado: históricos escolares, comunicações de faltas aos responsáveis, encaminhamentos ao conselho tutelar, notas para serem lançadas e tantos outros que no momento já nem se lembrava. Quem diz que trabalho de secretaria é fácil, não sabe do que está falando. A menos que se faça um trabalho porco, essa função burocrática dá realmente muita canseira... e estresse! Mas, no fundo, não tinha do que se queixar. Primeiro porque tinha um bom emprego, se comparado com a maioria das pessoas que conhecia. Talvez o melhor entre seus parentes. É certo que seu primo Davi tinha um rendimento bem mais significativo com seu trabalho em marcenaria, mas Suzana trabalhava seis horas por dia e tinha a tranquilidade de não temer os avanços da concorrência. Seus ganhos e seus gastos eram perfeitamente previsíveis, não tinha muito porque reclamar se comparada às outras mulheres da sua família: donas de casa, empregadas domésticas, manicures e cabeleireiras. Suzana tinha o que nenhuma delas havia conseguido ainda: independência.
Desde os 21 anos, seis meses após conseguir esse emprego, a jovem rumou para uma quitinete próxima ao trabalho. Foi juntando uma graninha e com o passar dos anos e dos modestos triênios, conseguiu comprar uma casa no morro logo atrás. Era uma casa simples, mas era sua, toda e somente sua! Preferiu morar mais perto do trabalho do que da família, não que não gostasse de sua família, muito pelo contrário, mas não queria ter sua vida controlada, especialmente sua vida sexual. Tinha 35 anos agora, solteiríssima e satisfeita com isso, não sabia até quando, mas até o momento estava bem.
Nem sempre sua casa estava limpa e arrumada. Decerto que nunca estava completamente limpa ou arrumada. Mas havia algo de encantador em sua decoração, algo que fazia Suzana sentir-se a vontade e tranquila tão logo abria a porta e adentrava seu confortável abrigo. A grande paixão de Suzana era o desenho. Ainda na escola gostava de rascunhar em seus cadernos as obras visuais da sua imaginação. Não à-toa foi censurada e advertida algumas vezes no meio das aulas por sua atenção desviada. Preferia as aulas de geometria, já que as de artes nunca lhe serviram para aprimorar a sua própria arte. Atualmente já quase nem lembrava do que aprendeu naqueles cursos inexpressivos. Já as aulas de geometria lhe serviram para expressar melhor as profundidades nos desenhos. Ela se lembrava bem do dia em que a paciente professora de geometria, ao lhe flagrar desenhando no meio da aula, ao invés de lhe advertir, lhe deu dicas para melhorar as noções de perspectiva. Boa gente aquela senhora, se perguntava como ela deveria estar nos dias atuais... certamente aposentada, pois já seria idosa.
Apesar de desenhar muito, não era de mostrar suas artes para ninguém. Era como um pequeno tesouro particular. Lhe entristeceria que outro não apreciasse o fruto do seu trabalho, por isso, seus desenhos, tal como sua casa, eram só seus. E assim, ambos se completavam. Cada novo desenho que ela fazia e que julgava digno, ia para a parede. E como seus desenhos expressavam sua vida, seu estado de espírito nos mais variados momentos, sua casa era como que uma autobiografia pictórica.

Chegar em casa se tornava um ritual sublime. Suzana olhava para aquelas paredes repletas de desenhos, como quem olha para o mar, ou mesmo para uma imagem de um santo. Entrava num estado de desapego corporal, uma espécie de mergulho na mente, quando você pouco se dá conta de que há algo para além de seu pensamento, assim, se envolve de tal forma, que caso esteja andando na rua, isto pode lhe proporcionar um belo de um tropeço. Mas dentro de casa, de frente para o mar ou sentada em uma igreja, não há este risco. Quase não abria as janelas de casa, pois sentia que ali dentro havia mais inspiração para sonhar acordada do que a vista de fora poderia lhe proporcionar.
E sonhar acordada era uma diversão recorrente, até quando estava fora de seu templo pessoal. Estava então bem aérea naquela terça-feira, quando chegou ao trabalho. Antes mesmo de se aproximar da secretaria foi surpresa por uma figura masculina que parecia ter saltado diretamente de seus sonhos para a realidade. Tratava-se de Flávio, ajudante de pedreiro que estava trabalhando na reforma da biblioteca. Após cumprimenta-lo e depois de discretamente perguntar aos colegas de quem se tratava, Suzana passou o dia a ter seus pensamentos invadidos pela figura do estranho. Tornou-se uma fantasia, um fetiche que ela precisava materializar.
Nos dias seguintes caprichou mais no visual, buscou situações para puxar assunto, e, chegada a famigerada sexta-feira, sacou toda sua capacidade cara-de-pau bem do fundo do espírito e chamou o belo moço para sair. Avaliava grande a possibilidade de um toco, mas aprendera, não fazia tanto tempo, que o “não” já se tem antes da pergunta, o “sim” só se alcança quem se dispõe a arriscar. Portanto, não há nada a perder ao assumir essa lógica. Ela assumiu, e ganhou. Foi para casa, se arrumou com todo o cuidado que a situação exigia. Encontrou-o no início da noite no bar combinado. Ele estava claramente tímido, ela também, mas sabia que era necessário disfarçar, o humor ajudava. Sentaram numa mesa de dois lugares. Flávio pouco falava, parecia nada a vontade... normal. O desconforto diminuía conforme iam baixando as garrafas de cerveja, e assim o belo e reservado rapaz se abria pouco a pouco com a ajuda da bebida que não sendo propriamente dionisíaca, tinha em seus efeitos o explícito parentesco com àquela que provia as bênçãos sagradas do deus grego. E o resultado foi uma linda noite. Mais que um sexo casual, as paredes da casa de Suzana testemunharam o encontro de duas pessoas, que antes estranhas, passavam agora a conhecer aspectos significativos uma da outra. Flávio admirou, com raro apreço, suas paredes decoradas, perdeu minutos e minutos observando cada desenho, com sincera dedicação. Elogiou-os com honestidade e Suzana sentiu uma satisfação dificilmente descritível em palavras. Seus desenhos eram como uma expressão exterior da autoimagem que ela produziu, saber que outras pessoas os estimavam, era sentir-se ela própria um ser digno de valor.  
E um caso amoroso com uma dinâmica um tanto quanto fluida se seguiu àquela noite. Suzana não tinha previamente nem queria depositar expectativas, mas sentimentos surgem quando menos se espera.
Os meses que seguiram àquele primeiro encontro foram regados de ânimo e uma disposição enorme floriu a vida da moça. O trabalho parecia mais agradável e ao chegar em casa ideias novas estimulavam as mais belas criações artísticas. Sentia que desde que começou a se relacionar com Flávio, seu ânimo para desenvolver coisas interessantes era outro. Entendeu concretamente, pela sua experiência, porque pintores e escritores buscavam tão ardorosamente por suas musas. Percebeu que, por mais fluido e sem perspectiva pudesse ser aquele relacionamento, uma coisa de fato Flávio lhe proporcionava: inspiração.
Mas o amante que nada lhe cobrava e nada lhe exigia, por outro lado não era do tipo que muito dividia. Se no encontro inicial o fator etílico lhe permitiu abrir-se em algum grau, com o passar do tempo, o silêncio disfarçado em sorrisos e em algumas poucas palavras carinhosas deu a tônica da pretensamente leve forma de agir do rapaz. Mas era uma “insustentável leveza” que o tempo foi revelando. E ela percebeu que qualquer que fosse o inferno que ele carregava por dentro, Flávio o guardaria tão somente para si. Ele não estava disposto a se expor, nem em quadros, nem em poesias, nem em palavras simples numa conversa de bar. Ele era um mistério, talvez para si mesmo. Seria isso o que havia nele que tanto a inspirava? Não houve tempo hábil para tirar a prova real. Um belo dia, ele sumiu. Já fazia tempo que a obra na escola havia sido concluída, portanto, ele não precisava mais passar por lá. Não respondeu mais as poucas e ocasionais mensagens que Suzana enviava. Ela não fez nenhuma questão de insistir em contatar quem já não desejava seu contato. Ele tinha seu endereço, telefones e perfis em redes sociais, mas não quis lhe procurar.
Resignar-se é um ato de sabedoria frente o imutável. Suzana soube agir assim. Mas o vazio veio, um vazio horrível de aceitar, principalmente porque o pior efeito do vazio foi levar todo e qualquer resquício de inspiração para algum lugar bem distante onde Suzana não podia mais alcançar. Ficou triste, mas não uma tristeza desesperadora, foi uma tristeza típica da desilusão, do desencantamento. Meses e mais meses se seguiram, pegava o lápis, olhava para o papel, olhava para o teto e até para os outros desenhos, mas nada, nada de ideia. Forçava reproduzir qualquer natureza morta do ambiente, mas ficava horrível. Desistiu.
...
Faltava pouco para fazer um ano desde que se comunicou pela última vez com Flávio, pensava bem menos nele. Dedicava-se com mais entusiasmo aos amigos e ao trabalho. Era sábado, dormia, não precisava de despertador, pois não teria nenhum compromisso. Abriu os olhos e percebeu que, por mais que a cortina cobrisse, a luminosidade externa era intensa. Preguiçou mais um pouco na cama, mesmo sentindo-se completamente descansada e despreocupada. Esticou-se e rolou calmamente de um lado para outro. Era tudo tão confortável, sentia-se tão confortável! Pensava que seria de manhã e como se surpreendeu ao ver 14:03 no relógio do seu celular! Mas não havia razão para desesperar, não tinha nenhum compromisso, assim, logo relaxou. E antes de tomar um café, arrumar a cama, ou mesmo lavar o rosto, pegou uma folha bem grande, e pôs a desenhar formas e figuras que remetiam de muitas e variadas formas ao seu recente caso de amor. O bar se misturava aos quadros de sua parede que eram levados por um mar de cerveja derramada de uma mesa para dois e que se transformava em seu lençol a cobrir, na cama de casal, um copo vazio. Ao lado, na mesinha de cabeceira, um bilhete sobre o qual um lápis repousava: “Adeus, muso!”. Já era tarde da noite quando após algumas pausas para fazer refeições, Suzana concluiu o desenho. Olhava-o diversas vezes com orgulho. “Ficou definitivamente lindo!”, pensava.
Nas semanas que se seguiram, Suzana sentia uma vontade absurda de desenhar e começou a fazer isto toda vez que chegava em casa. Os temas os mais variados, os resultados quase sempre a satisfaziam. Concluiu que, enfim, havia chegado a hora, fez cópias de todos os desenhos e com eles criou uma espécie de caderno, tipo esses que os tatuadores usam para sugerir opções de tatuagens. Era uma quinta-feira, sabia que a professora de artes estaria na escola. Chamava-se Daniele, e era uma professora jovem e muito entusiasmada, Suzana gostava de conversar com ela, pois tinha uma mente aberta e um repertório imenso de papos. Na hora do intervalo, ela tomou coragem, chamou Daniele para a secretaria e lhe mostrou o caderno. A reação positiva da professora, empolgou-a de tal forma que permitiu que a colega mostrasse seus trabalhos para os outros professores e funcionários da escola. Foi o assunto do dia! Muitíssimo elogiada, Suzana recebeu o apreço dos colegas de trabalho como o maior presente que alguém poderia ganhar. Na semana seguinte, Daniele lhe propôs um desafio novo: apresentar alguns de seus trabalhos numa feira de artes com os alunos das turmas em que a jovem professora lecionava. A secretária topou e assim abriu seu mundo privativo para toda a comunidade escolar. Foi emocionante ver tantos adolescentes elogiarem e comentarem seus quadros. 
Mariana Penna, 2015.