Paul
Mathews, 26 anos, solteiro, branco, vendedor de calçados em uma loja na
Broadway, cursa Computação à distância.
Seu
sonho secreto: ser um dia um escritor famoso.
Sua
maior vergonha: morar ainda com a mãe.
Lazer:
jogar World of Warcraft de madrugada. As vezes joga também The Sims 3 para
tentar se imaginar numa vida completamente diferente, mas esse é outro segredo,
já que não é bem visto um homem jogar esse tipo de jogo.
Heterossexual,
teve alguns breves namoros, nada de muito memorável. Gosta de mulheres
asiáticas, negras, brancas, latinas, todo tipo, sem preconceitos, sendo
inclusive bastante eclético no que diz respeito às suas distrações no Xvideos.
Magro,
apesar da péssima alimentação, repleta de gorduras e carboidratos. Sua “sorte”
era comer pouco mesmo, principalmente quando estava chateado ou deprimido.
Posição
Política: sem grande empolgação, acabava votando nos que achava menos ruins, em
geral os Democratas. Simpatizava com os filmes de Michael Moore.
Seu
cotidiano: preparar um café da manhã gorduroso, ir pro trabalho, voltar do
trabalho, ajudar sua mãe com os afazeres domésticos e, em média uma a duas
vezes por semana, sair com seus amigos para relaxar.
Porém,
uma vez a cada duas semanas, Paul se permitia um lazer diferente e mais íntimo.
Tomava o metrô para Manhatan, saltava para fazer uma conexão, e, sem pressa,
observava seu entorno no interior da estação. Se houvesse alguma apresentação
de um artista de rua no caminho, o que era bastante comum, parava como um turista
para assistir, e deixava um ou dois dólares de gorjeta. Trocava de linha e,
enfim, descia na estação em frente ao Museu de História Natural, dali seguia
caminhando para o Central Park. Procurava um lugar para sentar e, uma vez bem
posicionado, ao abrigo do sol e com uma visão aprazível, abria sua mochila,
pegava a caneta e um de seus dois caderninhos: o verde ou o preto. O verde era
o principal: usava para escrever suas histórias. O preto era um diário no qual
relatava não apenas os acontecimentos, mas principalmente suas reflexões. Tinha
dias em que ele já começava sacando direto o caderninho verde, porém na maioria
das vezes era o preto que introduzia os trabalhos. Hoje era um desses dias
regulares. Mas antes que começasse a escrever, Paul observava e pensava.
Respirava calma e profundamente enquanto olhava ao seu redor. Admirava a
folhagem das árvores: verdes no verão e primavera, multicoloridas no outono,
marrons ou mesmo ausentes no inverno. Paul admirava a variação das estações,
não invejava a galera da Flórida, nem mesmo do Havaí. A mudança lhe trazia boas
sensações. Esse gosto pela mudança parecia contradizer sua rotina,
significativamente tão estável, mas não contradizem o clima das suas histórias.
Naquelas vidas paralelas, a quebra da ordem era um imperativo constante e a
mudança das estações lhe ajudava a ambientar os diferentes cenários imaginados.
E ele estava no parque para transformar em registro escrito aquelas obras da
fantasia.
Mas antes, havia ainda umas reflexões na
ordem do dia. Tomou a caneta e começou a registrar no caderno preto os
pensamentos que conseguia organizar em texto.
Paul
gostava do seu trabalho, ainda que muitos o vejam como algo medíocre, ou até
subalterno. Ficaria satisfeito em receber mais e não ter de acatar ordens,
porém, a função em si lhe era atraente. Gostava de lidar com o público.
Diferente da maioria dos colegas, fazia questão de ser simpático e desfrutava
de um prazer extra ao perceber que os clientes saíam satisfeitos com o seu
atendimento. Em consequência, Paul se percebia útil, e isso era um conforto.
Ainda assim, seu segredo o perturbava de tempos em tempos.
Segredos
encobrem normalmente ações deploráveis, moralmente condenáveis. Mas o segredo
de Paul não se tratava exatamente de algo assim, seu segredo era seu sonho,
talvez o mais forte deles.
Paul
criava histórias em sua cabeça, era assim desde criança. É, talvez isso seja
normal para as crianças, mas ele manteve essa característica ainda adulto, o
que faz disso algo possivelmente não tão normal assim. Imaginar criaturas
fantásticas em mundos de possibilidades infinitas, aventuras as mais incríveis,
viagens no passado ou simplesmente experimentar os modos de vida de épocas
remotas, transportar-se para um futuro sombrio ou de possibilidades excitantes,
encarnar os mais variados personagens, heróis com habilidades surpreendentes, deuses,
seres imortais, vidas sem medos, nem limites. Eram histórias assim que ficavam
empolgando sua cuca enquanto o leite fervia e derramava no fogão. Aventuras tão
envolventes que preenchiam sem esforços o tempo gasto no metrô rumo ao trabalho.
Queria
registrar tudo aquilo, e escrevia. Mas ele tinha vergonha e ao mesmo tempo
tinha vergonha de ter vergonha, por isso seu sonho era um segredo. Não só por
isso.
Para
além do medo mais óbvio de não ser bom o suficiente no que fazia, havia ainda
outros elementos que provocavam desconforto.
Escolheu
o Central Park como “escritório”. Por quê? Era um lindo parque sem dúvida, mas
era também um cartão postal mundialmente conhecido. Como tal, expressava em si
uma ideia de grandiosidade. Certamente no entorno residiam muitas pessoas
famosas, vez ou outra Paul esbarrava com alguma celebridade. Provavelmente
vários escritores famosos habitavam próximo ao local em que ele se encontrava
naquele momento. Não sabia de nenhum especificamente, pois apesar de gostar
tanto de escrever, não era um leitor assíduo e, além do mais, não se ocupava em
tietar famosos.
Porém,
o fato dele estar ali, não demonstraria então seu desejo de ser grande? De ser “importante”
como aquele lugar, como aquelas celebridades? Este pensamento o embaraçava,
sentia-se infantil, seu sonho o infantilizava. Por que desejar ser conhecido?
Por que precisaria ele estar acima dos outros, ser “mais” do que os outros para
se sentir bem? Por que um escritor famoso deveria ser algo maior que um
vendedor de calçados? Por que não se contentar com a simplicidade da vida? Sim,
havia tantas belezas ao seu redor...
Interrompeu
a escrita e consolou-se observando de perto uma flor vermelha que tocava o
banco onde estava sentado. Uma formiga corria pelo caule, sem carregar nada, só
se movimentava. Paul desconhecia o destino daquele inseto e desconhecia se a
própria formiga tinha de fato pré-estabelecido um destino prévio.
Ok,
seria então o momento de abrir o caderninho verde? Pegou e colocou no colo. Mas
ainda não, não sabia que história escrever. Voltou a pensar em sua própria
história, em seu próprio segredo, pois percebeu que aquilo o incomodava.
Sentiu-se uma espécie de arrogante enrustido. Pensou nas vezes em que deixou
seu pensamento fluir e quando percebeu: lá estava ele na figura de um Dan Brown
ou uma Anne Rice da vida, sendo cultuado por uma multidão de fãs. Quando
acontecia isso sentia-se bem, muito bem, por uns instantes, mas logo a seguir
estava incomodado. Talvez fosse a angústia por saber que tal projeção era
impossível de ser materializada. Talvez estivesse provocando mentalmente uma
antecipação do fracasso como um mecanismo de defesa contra a frustração.
Nasceu
na maior potência do mundo, cujos idioma e cultura são difundidos como modelo
mundo afora, e ele tinha consciência disso. Nasceu na cidade mais famosa desse
país. Talvez devesse ser grato ao destino por isso. Afinal, quantos não
gostariam de estar em seu lugar? Quantos não nascem e morrem sob as
circunstâncias mais adversas. Ser um vendedor de calçados na Broadway pode
parecer um sonho inalcançável para muitas vidas circunscritas à vivência sangrenta
de guerras civis sem fim e à miséria absoluta em países devastados. Devia
assumir seu privilégio e se contentar. Mas talvez, se ele vivesse fora do
centro do capitalismo mundial, em algum país da América Latina ou da Ásia,
talvez lá, em alguma terra remota, seus modestos escritos tivessem alguma
chance de ganharem reconhecimento. Envergonhou-se de súbito, pois se deu conta
do pensamento vil que assaltou sua mente. Sentiu-se o canalha com ambições
arrogantes do qual ele quer se desvencilhar.
“O
mundo é simples, a vida é simples”, tentava se convencer! O desejo de grandeza é
mero efeito de uma sociedade competitiva, da qual Paul é crítico. Ele gosta de
se sentir bem com o mundo. Gosta que as pessoas o admirem e se esforça para
isso. Tem consciência dessa necessidade de autossatisfação via valorização
externa, mas ao mesmo tempo sabe que é justamente esse seu ímpeto de ser
reconhecido que o precipita no desejo infantil e megalomaníaco de ser um
escritor famoso, um “best seller”. Pronto, chegou-se a um dilema, Paul não quer
mais pensar sobre isso, tornou-se enfadonho... Fecha o caderno preto. Abre o
verde, após refletir um pouco, escolhe: a história de hoje é a de uma jovem indígena
que organiza seu povo e combate os invasores brancos nas terras do atual Oeste
dos Estados Unidos.
Passa-se
um tempo e... pronto, foi até onde deu na redação por hoje. Paul pensa em algum
dia mostrar suas histórias para alguém, quem sabe haverá outros que gostem dos
frutos de sua imaginação. Algo simples, um blog discreto talvez. Sabe
racionalmente que não será um Steve Berry. Ainda assim, quem sabe, poderá
sentir-se útil e realizado, como quando sai um cliente satisfeito da loja onde
trabalha. Mas não será agora que o ao mesmo tempo humilde e arrogante escritor
vai socializar seus textos, falta-lhe a coragem de seus heróis. Não hoje...
hoje Paul vai recolher seus caderninhos, coloca-los em sua mochila e retornar
pensativo para casa, ansioso por um novo passeio no parque.
Mariana
Penna, 2014/2015