domingo, 24 de agosto de 2014

A pressa nossa de cada dia nos acelera hoje




Me desculpem se vivi mais do que se espera de alguém da minha idade. Me desculpem se cada instante que se passa é para mim um instante que se perde. Se passo o hoje a ansiar pelo amanhã e se o amanhã me apavora por anunciar o fim. Me desculpem se não sei controlar a pressa que agita meu espírito. Não quero viver um dia de cada vez, quero viver um dia na intensidade de três. Não sei andar devagar. Não sei amar pouco, não sei amar poucos. Quero conhecer o mundo, quero mudar o mundo.  Me desculpem se quero aprender cinco, seis idiomas estrangeiros; se quero aprender a dançar; se quero escrever muito, se quero arrumar um trabalho que me faça feliz; se quero tempo para militar e se também quero tempo pro lazer. Perco prazos com outros prazos mais distantes na cabeça. Perco amores antecipando mentalmente o fim da relação. Mas não perco vida, ela me sacode, me ferve e me lança o tempo inteiro em movimento. Perco a juventude dia a dia e isso me apavora com o medo da solidão. Mas sigo adiante, me apegando à força dos amores incondicionais. Temo a morte das pessoas queridas e sofro antevendo o futuro. Mas sigo adiante, buscando distribuir meus sentimentos e fazer da classe trabalhadora minha família. Não sei o que pensar da morte, não tenho nenhuma certeza. A única certeza que carrego nessa vida é que uma vida é muito pouca para tudo o que desejo.

Mariana Penna, 2014.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Afagos Clandestinos




Se perguntava sobre como tudo teria sido se Elisângela não tivesse morrido. Estaria ela ali, sentada naquele sofá velho, à meia luz, tirando e colocando as balas no 38, enquanto pensamentos contraditórios assombravam seu espírito?
Com o olhar perdido, lançado sobre algum ponto sem significado da parede a sua frente, pensava em sua família e no quanto deviam sentir sua falta. Lacrimejava ao pensar nas dores de sua mãe... Doía demais a culpa por fazê-la sofrer, mas Liz não podia se acovardar. Quantas mães não sofreram dores maiores que aquela, fruto da ação de seus inimigos? Da sua ação dependia a mudança da sociedade, era necessário entregar-se em sacrifício por um bem maior.  

Mas será? Será que conseguiriam acordar as massas? Fazê-las despertar para a Revolução Social? Destronariam enfim seus opressores que lhes tomaram tudo e impuseram ao povo a miséria? Eram tantas dúvidas, mas tentava se convencer da certeza de seu destino, da necessidade de não voltar atrás, certa ou errada – justificava a si mesma – a escolha havia sido feita e não podia arredar pé. Elisângela morreu, acreditam que seguiu até o final sem delatar nenhum companheiro. Era duro demais imaginar as dores pelas quais ela devia ter passado. Era preciso também ser forte, era preciso honrar a memória da companheira.
Mas ao mesmo tempo, confrontada com as incertezas, a inevitabilidade do destino lhe era atemorizadora. Tentava acalmar seu espírito. Sua barriga gelava enquanto manipulava o chumbo. Foi quando da escuridão veio André, em aparência transtornado. Havia uns três meses que Liz e André transaram. Num momento de solidão, enquanto outros companheiros estavam fora: troca de olhares, poucas palavras, gemidos de sexo em tom de desespero...
André nunca mais falou sobre isso. Liz percebeu que o rapaz a evitava, também se afastou. Doeu, ficou ressentida. Mas há que endurecer em dobro quando se é uma mulher e guerrilheira urbana. Tentou esquecer, ignorar que a troca de afetos lhe fazia falta.
Mas foi então que André lentamente se aproximou, agachou em frente à jovem, tirou de lado a arma e segurou-lhe as mãos. Seus olhos haviam chorado ou estavam prestes a fazê-lo:
- Desculpa Liz! Eu fui egoísta, não pensei em você, quis afastar de mim tudo o que pudesse me fazer menos forte. Mas este fardo está pesado demais para carregar. E a verdade é que amanhã faremos a mais arriscada ação até o momento e ... não dá, preciso assumir, preciso confessar... o meu medo. Eu queria que tudo fosse diferente, queria poder saber o seu nome e você o meu. Queria conhecer seu passado e poder contar-lhe o meu. Mas esse mundo não nos deixou escolhas, não é companheira?
 Ela chorou... e retribuiu um beijo terno. Com as mãos que antes tocavam a arma, agora afagava os cabelos de seu companheiro. Sentia deslizar pelos dedos aqueles fios lisos. A sensação a acalmava... não era mais o contato frio do metal. E doaram-se os mais delicados carinhos, se permitiram sentir, tocar... parecia que podiam fundir os corpos num abraço... E assim permaneceram, completamente grudadinhos, como duas crianças assustadas.
No dia seguinte, os dados seriam lançados: vida, morte, ou o pior... tortura. Um destes lhes esperava. Mas naquela noite, tudo o que desejavam era que nada daquilo parecesse importar, só queriam esquecer, por alguns momentos, que tiveram o mau destino de nascerem em tempos sombrios.

Mariana Penna, 2014.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Corpo e Cérebro




Desde criança Janaína decidiu que não queria ser só mais uma menininha. Queria ser a melhor aluna em matemática e jogar bola melhor que qualquer um dos moleques. No Ensino Médio percebeu que sua paixão pela química e física tinha superado em muito sua vontade de participar das peladas com os garotos.
Era loura, e seu grande pesadelo era ser considerada burra. Passou no vestibular dentre os primeiros lugares para o curso de biomedicina na UFRJ. Antes estava na dúvida entre biomedicina e farmácia. Queria estudar doenças e suas curas. Fez estágio do Ciências Sem Fronteiras nos Estados Unidos e tão logo terminou a graduação passou num concurso para a Fiocruz. Lá desenvolvia pesquisas sobre doenças tropicais, com foco na dengue.
Um dia, porém, chegou um famoso cientista da República Tcheca em visita à Fiocruz. Borya Stansel ficou admirado com o nível de sofisticação da pesquisa desenvolvida por Janaína e sua equipe. Marcaram um café para continuar a conversa. Duas horas rapidamente se passaram naquele intercâmbio científico. Janaína mencionou que quisera ela ter duas vidas para poder avançar o suficiente na pesquisa. Foi então que o tcheco lhe confidenciou que havia um modo de ampliar em até quatro vezes sua velocidade cerebral, mas que para obter tal façanha o custo seria elevado.
Os olhos de Janaína brilharam de emoção: - Que custo?
- Seu corpo.
Mas antes que a jovem genial se ofendesse com tal proposta indecente, Borya explicou que se tratava de um custo mais literal: para ampliar o funcionamento cerebral ela precisaria se submeter a um procedimento cirúrgico que separaria sua cabeça do restante do corpo.
Apesar do arrepio que lhe percorreu a espinha, apesar da visão apavorante que transpunha sua imaginação para um cenário de filme de terror, apesar de tudo, a ideia ainda lhe parecia atraente. Não pestaneou e aceitou a proposta. Naquela noite, Janaína abriria mão de seu corpo para tornar-se a mulher mais inteligente do mundo, o ser humano mais inteligente do mundo.
O medo foi suplantado pela ansiedade e passado o efeito da anestesia, um mundo de possibilidades mentais se apresentava à jovem. Seus sentidos ampliados, as contas mais complexas resolvidas num piscar. Não precisava se alimentar, nem ir ao banheiro, nem mesmo respirar, tudo lhe é era fornecido diretamente pela máquina que lhe mantinha viva e acelerava seu cérebro. A mesma máquina transcrevia as ideias que Janaína expunha oralmente. Borya estava orgulhoso de ter criado uma verdadeira máquina de pensar!
Porém, uma coisa deu errado. Janaína subitamente se sentiu enjaulada, percebeu que estava fisicamente presa à sua mente. Como se não bastasse não poder mais correr, nem andar, nem tocar em nada, sabia que estava só. Já não era um ser humano como os demais, seu cérebro era tão mais rápido que não se entenderia com mais ninguém. Olhou para seu corpo, estendido, inerte, sua vontade era de gritar e gritar muito. E foi isso que ela fez: começou a gritar histericamente.
Borya apavorado tentou acalma-la, ao que ela respondeu:
- Não, não, não, não, não, não!
E o arrependimento se vocalizava repetidas vezes:
- Devolva meu corpo, eu quero meu corpo!
...
Janaína acordou apavorada, suando. Ainda estava noite. Acalmou a respiração e ainda nervosa olhou para baixo. Com alívio, constatou: seu corpo estava lá...
Naquele mesmo dia, ela resolveu se matricular num curso de dança.
 
Mariana Penna, 2014