sábado, 29 de março de 2014

A escritora contraditória




Toda vez que lhe perguntavam por que a maioria de seus personagens, especialmente os protagonistas, eram femininos, seu sangue fervia.  A raiva era muita, mas preferia não responder para não perder as estribeiras e não “confirmar” a teoria da histeria feminina. Desconversava, mas em seu íntimo o que aflorava era o incômodo, afinal como era possível haver tal estranhamento?! Autores homens escrevem majoritariamente sobre personagens masculinos e ninguém pergunta a eles por que seus protagonistas são também homens. Já no seu caso, ser mulher e ter personagens mulheres era visto como exotismo e se incomodar com este estigma seria visto como histeria, neurose feminista
Ela escrevia principalmente sobre amor e sexo. Amor e sexo são certamente o que mais vendia. Crítica social também tem uma boa saída, desde que se mantenha nos limites bem comportados de um Gabriel O Pensador, ou seja, falar mal dos políticos, de corrupção, dizer que os outros são alienados ou “louras burras”, mas nunca tocar no ponto sobre quem são de fato os donos do poder. As pessoas gostam de se sentir inteligentes, críticas, mas especialmente no que se refere às artes, muitos se limitam a atacar os sintomas e não as causas das doenças sociais. Deixemos essa coisa de origem dos problemas para os historiadores e seus livros que só circulam nas universidades e vamos bater nos políticos, que na verdade não passam de testas de ferro dos grandes empresários capitalistas. E já que ela não podia fazer críticas de verdade sem cair no ostracismo, preferia então não ser mais uma a cair no lugar comum de “Que país é esse?”, pois desse mar de clichês “classe média sofre” ela já estava nauseada. Portanto, fazia seu trabalho de forma despretensiosa, reconhecendo os limites que a indústria cultural capitalista lhe impunha. Em paralelo, circulava seus escritos mais críticos em meios mais undergrounds. Talvez no fundo se sentisse como aqueles escritores notórios e já falecidos em um passado distante, que mesmo tendo se dedicado em vida a escrever banalidades, após a morte descobriam-se quais eram de fato as suas grandes obras.
Mas seria falar de amor e sexo mera banalidade? Ela vivia a tentar se convencer disso, a tentar se convencer da irrelevância desses temas, do quão pouco “sérios” são e que só lhe serviam como fonte de renda. No fundo, ela buscava reduzir e sufocar a importância que amor e sexo têm na sua vida. Falar de sexo talvez nem fosse tanto um problema, porque, tendo nascido mulher, destacar o sexo como esfera relevante de sua vida, num mundo em que, segundo dizem, apenas 30% das mulheres sabem o que é um orgasmo, naturalizar a sexualidade feminina beira algo revolucionário. Já o amor? Bem, o amor já é mais que naturalizado como um atributo feminino. Tinha raiva dele por ser algo que estava dentro dela, sempre como uma utopia inatingível, drenando energias e limitando suas possibilidades de desenvolvimento pessoal. Por mais que tentasse escapar do impulso romântico, ele estava por todo lado lhe cercando, no rádio, nos filmes, nos livros. E quando menos imaginava, se via perdida em mais uma paixão, cujo fim era tão certo quanto o anoitecer ao fim do dia.
Sua irmã lhe dizia que sua vida amorosa era como um eterno curto-circuito. Seu melhor amigo achava que sua busca vinha de uma insatisfação por algo que ela procurava, mas não havia ainda encontrado. Ela não via sentido em resolver nenhum curto-circuito, não queria mesmice. Tampouco queria acreditar num amor redentor, isso parecia fazer tanto sentido como viver em busca da fonte da juventude. Buscar o amor eterno, a paixão que nunca se finda, seria tão absurdo como desafiar a morte. Assim, reconhecendo o único lugar em que o amor romântico é realizável, despejava na ficção literária toda sua tempestade de desejos latentes de amor e erotismo infinitos. Saciava assim sua sede ao mesmo tempo em que inculcava nas mentes de seus leitores o desejo de vivenciar aquelas histórias de ardor passional interminável. Contraditório? Bem, conforme já dizia uma de suas amigas: a realidade é contraditória.

Mariana Penna, 2013.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Pesadelo (na vida?)



“Se não posso dançar, essa não é minha revolução”
Emma Goldman

Direcionava-me para a calçada da praia, nosso ponto de encontro. No caminho, muitas pessoas felizes, ao menos eufóricas e festivas pareciam. Caminhava ao encontro de meus companheiros, sentia um certo desconforto ao observar os transeuntes.
Cheguei, iríamos para uma atividade de lazer, em tese, mas o tom era sério: em roda todos aguardavam por outros dois companheiros: um era o nosso principal formulador, o segundo, egresso de um outro coletivo mas que agora conosco estava. Aguardávamos preocupados, um dentre nós apresentou a possibilidade da exposição já estar fechada. Era para lá que intentávamos nos dirigir. Pensávamos: “onde estarão nossos companheiros?”. O mais antigo devia estar preocupado com alguma demanda política, o mais novo, não fazíamos idéia. Faltam dez minutos para as oito horas, não podemos mais esperar. Corremos para a exposição... em vão, um cartaz na porta informa que fechou às sete e meia. Descobrimos que o companheiro mais novo está lá dentro, chegou mais cedo e foi ver a exposição sozinho. Um de nós, revoltado por ter perdido a possibilidade de ver a exposição, discute calorosamente na bilheteria. É reprimido. Restou-nos ficar na esperança de que a exposição venha a ser repetida outra vez.


Mariana Penna, 2009.

domingo, 16 de março de 2014

Nada Justifica




justificar
jus.ti.fi.car
(lat justificare) vtd 1 Declarar justo, demonstrar ou reconhecer a inocência de, descarregar da culpa imputada: Justificaram-no e atestaram que ele era inocente. vtd 2 Teol Reabilitar, declarar justo, inocente; absolver: A fé é que justifica o pecador. vpr 3 Demonstrar a boa razão do seu procedimento, provar a sua inocência; reabilitar-se: "Ele negava, explicava-se, justificava-se" (Machado de Assis). Não se justificará desse mau passo. vtd 4 Provar judicialmente por meio de justificação: Justificar a existência do ato ou relação jurídica. vtd 5 Desculpar: Um erro não justifica outro. Não vejo como justificar ao meu amigo a minha demora. vtd 6 Explicar com razões plausíveis: Como justificarei a minha presença aqui? vpr 7 Provar que é: "Teresa justificava-se filha, por índole e por sangue, de Joaquim Pereira" (Cam. Castelo Branco). vtd 8 Fazer que pareça justo; explicar, fundamentar: As circunstâncias justificam a adoção dessas medidas. Com que justificará ele o seu ódio? vtd 9 Fazer jus a: Justificar a confiança. vtd 10 Tip Fazer uma linha do mesmo comprimento de outras; espacejar. vtd 11 Inform Num processador de texto, adicionar espaços entre as palavras de uma linha para assegurar-se que o texto preencha a linha inteira; alinhar texto.

Dicionário Michaelis


Hoje quando peguei o ônibus, me senti um lixo fútil com meus draminhas pessoais tão ridículos. Sentei num daqueles bancos mais altos, porém comecei a sentir um odor bem estranho, parecia alguma coisa em putrefação. Pensei que pudesse vir de fora do ônibus, mas não, era um senhor que estava na minha frente. Mudei de lugar, o odor havia se tornado insuportável. Do outro lado do corredor, pude perceber que o homem em questão estava bem doente, parecia usar fraudas, tinha alguns canos transparentes pendurados em seu corpo, portava também uma muleta. Seu jeito ora parecia demonstrar não estar sóbrio, ora parecia evidenciar uma doença mental. Não pude identificar ao certo. Mas houve também momentos em que ele manifestava algum desconforto físico e até mesmo dor. O que quer que fosse o problema daquele homem, uma coisa é certa, com uma saúde dessas e sendo pobre como seus farrapos e o fato de estar andando de ônibus indicavam ser, certamente não dá pra alguém ser feliz.
Comecei a escrever no meu diário... é, sou uma pessoa adulta que ainda tem um diário...
Algum tempo depois, entrou um vendedor de balas no ônibus. Eu estava meio compenetrada escrevendo estas coisas aqui quando ele me ofereceu uma bala de cortesia. Tal como fez a mulher sentada ao lado, eu neguei meio que no automático, sem muito pensar. Depois, me senti mal e observei o homem. Parecia bastante cansado, fatigado mesmo. Em uma das mãos tinha um bolo de notas, notas altas inclusive, algumas de 50 reais. Segurava o bolinho de dinheiro de forma despreocupada. Fiquei pensando que aquela atitude demonstrava das duas uma: estando na Avenida Brasil, ou o homem era muito  desapegado, ou estava muito seguro de que ninguém iria zoar com sua grana. Enquanto eu pensava essas coisa, numa determinada passarela, que não me atentei qual era, ele desceu. Mais adiante passamos por alguns jovens perto de um viaduto. Eram uns cinco, deviam ter entre 20 e 30 anos e estavam aparentemente drogados, provavelmente de crack. O ônibus parou no ponto próximo a onde eles estavam. Ao descer uma mulher com uma menininha, dois dos rapazes aproveitaram e subiram no ônibus. Em seguida, comemoraram o feito. O ônibus já estava arrancando quando na cola deles, um vendedor de água aproveitou também a abertura da porta do meio e entrou. Isso deve ter sido na passarela 8 ou 9. E foi isso.
Mais adiante, passamos em frente à Fiocruz, um homem desmaiado na calçada era socorrido por uma mulher de roupas brancas.
Desci na passarela do INTO para pegar ônibus para Niterói do outro lado, no sentido contrário. Enquanto subia a passarela, uma sensação diferente foi me tomando, senti uma vertigem, não sabia o que era, se era meu estado de espírito aliado à falta de sono ou se havia alguma coisa de errado com os cogumelos chineses que eu tinha feito de almoço. Fato é que senti certa alteração do meu estado de consciência e a percepção da realidade parecia suavemente alterada. Cabisbaixa e me sentindo um pouco desorientada, prossegui para o ponto de ônibus tentando entender o que se passava na minha cabeça.
Talvez fosse uma antecipação de um sentimento de culpa pela viagem ao exterior que eu estava prestes a fazer e que era motivo da minha ida para Niterói. Como para muitos seres humanos, viajar é uma das coisas que mais me proporciona satisfação. Ao mesmo tempo, talvez uma culpa cristã (ou socialista) latente sempre me ataca quando me encontro em posição de turista, especialmente se nessa circunstância eu me deparo com pessoas que nem sequer podem sonhar em desfrutar de experiência semelhante. Não que seja este o caso, pois não se tratava de fazer turismo, mas de estudar. Eu poderia então fazer uso de um subterfúgio ideológico liberal e tentar convencer a mim mesma que eu fiz por merecer por isso, sempre estudei muito e trabalhei com afinco para conseguir uma bolsa... Mas não, não justifica.
Após atravessar a ponte Rio-Niterói e chegar no centro da cidade em que morei por 5 anos, vi um conjunto habitacional onde sonhava em morar. Por alguns instantes me lembrei que ainda não tenho casa própria, moro na periferia da cidade, que a bolsa do doutorado é algo provisório e que meu emprego não rende nem dois salários mínimos. Não tenho carro, nunca usei roupa de marca e não sou afeita a luxos... por alguns minutos me senti menos privilegiada... Mas não, não justifica.


Mariana Penna (2014)