Se perguntava
sobre como tudo teria sido se Elisângela não tivesse morrido. Estaria ela ali,
sentada naquele sofá velho, à meia luz, tirando e colocando as balas no 38,
enquanto pensamentos contraditórios assombravam seu espírito?
Com o olhar
perdido, lançado sobre algum ponto sem significado da parede a sua frente, pensava
em sua família e no quanto deviam sentir sua falta. Lacrimejava ao pensar nas
dores de sua mãe... Doía demais a culpa por fazê-la sofrer, mas Liz não podia
se acovardar. Quantas mães não sofreram dores maiores que aquela, fruto da ação
de seus inimigos? Da sua ação dependia a mudança da sociedade, era necessário
entregar-se em sacrifício por um bem maior.
Mas será? Será
que conseguiriam acordar as massas? Fazê-las despertar para a Revolução Social?
Destronariam enfim seus opressores que lhes tomaram tudo e impuseram ao povo a
miséria? Eram tantas dúvidas, mas tentava se convencer da certeza de seu
destino, da necessidade de não voltar atrás, certa ou errada – justificava a si
mesma – a escolha havia sido feita e não podia arredar pé. Elisângela morreu,
acreditam que seguiu até o final sem delatar nenhum companheiro. Era duro
demais imaginar as dores pelas quais ela devia ter passado. Era preciso também ser
forte, era preciso honrar a memória da companheira.
Mas ao mesmo
tempo, confrontada com as incertezas, a inevitabilidade do destino lhe era
atemorizadora. Tentava acalmar seu espírito. Sua barriga gelava enquanto
manipulava o chumbo. Foi quando da escuridão veio André, em aparência
transtornado. Havia uns três meses que Liz e André transaram. Num momento de solidão,
enquanto outros companheiros estavam fora: troca de olhares, poucas palavras,
gemidos de sexo em tom de desespero...
André nunca mais
falou sobre isso. Liz percebeu que o rapaz a evitava, também se afastou. Doeu,
ficou ressentida. Mas há que endurecer em dobro quando se é uma mulher e
guerrilheira urbana. Tentou esquecer, ignorar que a troca de afetos lhe fazia
falta.
Mas foi então que
André lentamente se aproximou, agachou em frente à jovem, tirou de lado a arma
e segurou-lhe as mãos. Seus olhos haviam chorado ou estavam prestes a fazê-lo:
- Desculpa Liz!
Eu fui egoísta, não pensei em você, quis afastar de mim tudo o que pudesse me
fazer menos forte. Mas este fardo está pesado demais para carregar. E a verdade
é que amanhã faremos a mais arriscada ação até o momento e ... não dá, preciso
assumir, preciso confessar... o meu medo. Eu queria que tudo fosse diferente,
queria poder saber o seu nome e você o meu. Queria conhecer seu passado e poder
contar-lhe o meu. Mas esse mundo não nos deixou escolhas, não é companheira?
Ela chorou... e
retribuiu um beijo terno. Com as mãos que antes tocavam a arma, agora afagava
os cabelos de seu companheiro. Sentia deslizar pelos dedos aqueles fios lisos. A
sensação a acalmava... não era mais o contato frio do metal. E doaram-se os
mais delicados carinhos, se permitiram sentir, tocar... parecia que podiam
fundir os corpos num abraço... E assim permaneceram, completamente grudadinhos,
como duas crianças assustadas.
No dia seguinte,
os dados seriam lançados: vida, morte, ou o pior... tortura. Um destes lhes
esperava. Mas naquela noite, tudo o que desejavam era que nada daquilo parecesse
importar, só queriam esquecer, por alguns momentos, que tiveram o mau destino
de nascerem em tempos sombrios.
Mariana Penna,
2014.