quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Cabelos Mágicos


Foi quando entrou para a escola que se deu conta de que havia algo de errado em seu cabelo. Antes, talvez, nem tivesse se apercebido dele, que ficava aos cuidados de sua mãe. Ela os trançava, fazia marias-chiquinhas e tantos outros penteados extravagantes que as mães acham lindo fazer em seus filhotinhos. Porém, foi para a escola, e antes que compreendesse o bê-á-bá, ou mesmo a armar uma operação matemática qualquer, aprendeu que havia algo de muito errado com seu cabelo: cabelo ruim, bombril, cabelo duro, cabelo de crioula, eram algumas das coisas que aprendeu sobre ele.

E quantos desafios lhe impusera a escola! Além de ter que cortar um dobrado para aprender tanta coisa nova, descobriu que precisava travar ainda uma verdadeira batalha contra seu cabelo. E logo foram se apresentando as armas que deveria usar naquele combate: henê, alisantes vários, chapinha, bobs, creme para pentear, gel fixador... e a lista não parava de crescer. Então ela se empenhou ao máximo para corrigir aquele problema que todos em sua volta estavam sempre a apontar, mas não importava o quanto se esforçasse, o quanto investisse em produtos, seu cabelo nunca ficava bom. Mesmo quando ele parecia enfim estar parecido com um cabelo bom, logo apareciam as malditas raízes enroscadas.


Mas que raiva! Que ódio daquele defeito! O que ela inocente teria feito para merecer tão desagradável castigo? Sabia que não podia culpar a Deus, não cometeria tamanha blasfêmia! Mas se a culpa não era dele, de quem era então?

De tempos em tempos, sua mãe lhe falava de sua bisavó que teria vindo de Angola. Cedo também aprendeu na escola que Angola estava lá naquele continente pobre, sujo, cheio de doenças...

                ... negro... chamado África. E de lá veio seu cabelo, daquele continente e da sua bisavó!

Quando esses pensamentos lhe vieram à cabeça, sentiu-se culpada, sabia no fundo que não era certo. Aquelas pessoas que viviam na África não podiam ser consideradas culpadas de sua própria miséria, por sua própria infelicidade. Não, elas precisavam de ajuda, precisavam que lhe estendessem a mão para que pudessem melhorar de vida. Tudo bem, mas ainda assim...  no fundo também sentia uma repulsa a tudo aquilo. Tudo bem, sentia por eles um tipo de compaixão, pena talvez, mas... não, não queria que aquilo estivesse nela, fosse parte dela.  Não, não queria de nenhuma forma se ver como parte deles.  É, no fundo era isso, e isso era incômodo...

Dormiu, e ao amanhecer, pouco antes de despertar, sonhou. Caminhava sozinha numa rua muito clara, tão clara que mal conseguia abrir os olhos, e, com as mãos acima deles, tentava evitar o incômodo dos raios solares. Foi quando uma mulher negra apareceu a sua frente, caminhando em sua direção. Parou, e então a mulher se aproximou. Olhou firmemente em seus olhos e a abraçou... O abraço foi reconfortante e durou alguns segundos. Em seguida, a mulher disse em seu ouvido, num tom terno e compassivo: “querida, não me culpe pelo seu cabelo, nunca quis lhe fazer mal algum. Em verdade, o que lhe concedi foi um dom. Saiba que seus cabelos são um presente, pois eles são cabelos mágicos!”. A luz foi ficando mais forte e ela despertou, percebeu que deixara a cortina aberta e era uma manhã ensolarada.

Alguns anos se passaram, e ela, apesar do sonho, prosseguiu em seu ritual de tentativa de embelezar aquele cabelo ruim.

Sempre mal sucedida, pois seu cabelo parecia uma espiga de milho, tanto pelas pontas esquisitas, como pela cor desbotada que o alisante cheio de amônia gerava, dando-lhe uma aparência de mico-leão-dourado. Resolveu pintar. Mas a tinta que queria não pegou. Resolveu descolorir antes de pintar novamente. Descoloriu e novamente pintou. Foi quando percebeu que todo aquele acúmulo de produtos químicos desmanchou o seu cabelo! Quando tocava nos fios, estes soltavam e esfarelavam em suas mãos! “Que situação horrível!”, pensava ela. Não havia outra alternativa senão passar a máquina!

E foi assim que chegou ao fundo do poço da feiura capilar!

Já que pior não podia ficar e, após o trauma que indústria do embelezamento de cabelo ruim lhe havia causado, ela resolveu deixar seu cabelo crescer ao natural e ver no que dava. E ele foi crescendo assim: enroscadinho e redondinho. Após crescer uns 4 cm, quando ela olhava no espelho tinha uma inusitada sensação de “nada mal”. Comprou uma faixa bem colorida e colocou. Mas ainda se preocupava um pouco com as opiniões dos outros. Porém, começou a ouvir alguns elogios, e, por incrível que pareça, lhe soavam sinceros. Aos poucos foi se animando com a ideia, enquanto isso, deixava os alisantes guardados no armário do banheiro.

Conheceu outras pessoas com cabelos como o seu, afro nos mais variado estilos – black, nagô, dreads, tranças – conheceu pessoas com cabelos diferentes, mas que apreciavam também cabelos como os seus. E conforme a possibilidade de cortes e penteados se ampliava em uma variedade sem fim de alternativas, seu mundo foi ganhando também cores e contornos os mais diversos. Foi quando um dia olhou-se no espelho e sentiu-se feliz. Sentiu que a África era parte de si, e a Europa, a América e a Ásia, e até mesmo a longínqua Oceania. Sentiu-se humana e viu que a beleza estava em toda a parte, sendo contida tão somente por aqueles que preferem se limitarem aos padrões dos que se acham superiores. Estudou sobre o racismo, sobre História da África e entendeu que nada era por acaso e nada era natural. Nem sempre e nem muito menos em todo lugar, ser magra e branca foi considerado bonito. Entendeu que os padrões dominantes de beleza foram criados pelos dominadores e que estes o fizeram justamente para oprimir e explorar. Os negros não eram então coitadinhos de quem se deveria ter pena, eram sim pessoas em igual dignidade, mas que foram injustiçadas por outras pessoas brancas e mesmo negras que buscaram privilégios e não a igualdade, a liberdade e a felicidade humanas.  Então...


...jogou fora seus alisantes.

Feriado de 20 de novembro. O dia estava lindo e ensolarado. Então, arrumou-se para encontrar seus amigos e curtir uma bela praia. Pôs uma flor no cabelo, abriu a porta, pisou para fora, olhou o céu e pensou: “Valeu bisavó!”.


Mariana Penna, 2013

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