Foi quando entrou para a escola
que se deu conta de que havia algo de errado em seu cabelo. Antes, talvez, nem
tivesse se apercebido dele, que ficava aos cuidados de sua mãe. Ela os
trançava, fazia marias-chiquinhas e tantos outros penteados extravagantes que
as mães acham lindo fazer em seus filhotinhos. Porém, foi para a escola, e
antes que compreendesse o bê-á-bá, ou mesmo a armar uma operação matemática
qualquer, aprendeu que havia algo de muito errado com seu cabelo: cabelo ruim, bombril,
cabelo duro, cabelo de crioula, eram algumas das coisas que aprendeu sobre ele.
E quantos desafios lhe impusera a
escola! Além de ter que cortar um dobrado para aprender tanta coisa nova,
descobriu que precisava travar ainda uma verdadeira batalha contra seu cabelo.
E logo foram se apresentando as armas que deveria usar naquele combate: henê,
alisantes vários, chapinha, bobs, creme para pentear, gel fixador... e a lista
não parava de crescer. Então ela se empenhou ao máximo para corrigir aquele problema
que todos em sua volta estavam sempre a apontar, mas não importava o quanto se
esforçasse, o quanto investisse em produtos, seu cabelo nunca ficava bom. Mesmo
quando ele parecia enfim estar parecido com um cabelo bom, logo apareciam as
malditas raízes enroscadas.
Mas que raiva! Que ódio daquele
defeito! O que ela inocente teria feito para merecer tão desagradável castigo?
Sabia que não podia culpar a Deus, não cometeria tamanha blasfêmia! Mas se a
culpa não era dele, de quem era então?
De tempos em tempos, sua mãe lhe
falava de sua bisavó que teria vindo de Angola. Cedo também aprendeu na escola
que Angola estava lá naquele continente pobre, sujo, cheio de doenças...
...
negro... chamado África. E de lá veio seu cabelo, daquele continente e da sua
bisavó!
Quando esses pensamentos lhe
vieram à cabeça, sentiu-se culpada, sabia no fundo que não era certo. Aquelas
pessoas que viviam na África não podiam ser consideradas culpadas de sua
própria miséria, por sua própria infelicidade. Não, elas precisavam de ajuda,
precisavam que lhe estendessem a mão para que pudessem melhorar de vida. Tudo
bem, mas ainda assim... no fundo também
sentia uma repulsa a tudo aquilo. Tudo bem, sentia por eles um tipo de compaixão,
pena talvez, mas... não, não queria que aquilo estivesse nela, fosse parte
dela. Não, não queria de nenhuma forma
se ver como parte deles. É, no fundo era
isso, e isso era incômodo...
Dormiu, e ao amanhecer, pouco
antes de despertar, sonhou. Caminhava sozinha numa rua muito clara, tão clara
que mal conseguia abrir os olhos, e, com as mãos acima deles, tentava evitar o
incômodo dos raios solares. Foi quando uma mulher negra apareceu a sua frente,
caminhando em sua direção. Parou, e então a mulher se aproximou. Olhou
firmemente em seus olhos e a abraçou... O abraço foi reconfortante e durou
alguns segundos. Em seguida, a mulher disse em seu ouvido, num tom terno e
compassivo: “querida, não me culpe pelo seu cabelo, nunca quis lhe fazer mal
algum. Em verdade, o que lhe concedi foi um dom. Saiba que seus cabelos são um
presente, pois eles são cabelos mágicos!”. A luz foi ficando mais forte e ela
despertou, percebeu que deixara a cortina aberta e era uma manhã ensolarada.
Alguns anos se passaram, e ela,
apesar do sonho, prosseguiu em seu ritual de tentativa de embelezar aquele
cabelo ruim.
Sempre mal sucedida, pois seu
cabelo parecia uma espiga de milho, tanto pelas pontas esquisitas, como pela
cor desbotada que o alisante cheio de amônia gerava, dando-lhe uma aparência de
mico-leão-dourado. Resolveu pintar. Mas a tinta que queria não pegou. Resolveu
descolorir antes de pintar novamente. Descoloriu e novamente pintou. Foi quando
percebeu que todo aquele acúmulo de produtos químicos desmanchou o seu cabelo! Quando
tocava nos fios, estes soltavam e esfarelavam em suas mãos! “Que situação
horrível!”, pensava ela. Não havia outra alternativa senão passar a máquina!
E foi assim que chegou ao fundo
do poço da feiura capilar!
Já que pior não podia ficar e,
após o trauma que indústria do embelezamento de cabelo ruim lhe havia causado,
ela resolveu deixar seu cabelo crescer ao natural e ver no que dava. E ele foi
crescendo assim: enroscadinho e redondinho. Após crescer uns 4 cm, quando ela
olhava no espelho tinha uma inusitada sensação de “nada mal”. Comprou uma faixa
bem colorida e colocou. Mas ainda se preocupava um pouco com as opiniões dos
outros. Porém, começou a ouvir alguns elogios, e, por incrível que pareça, lhe soavam
sinceros. Aos poucos foi se animando com a ideia, enquanto isso, deixava os
alisantes guardados no armário do banheiro.
Conheceu outras pessoas com
cabelos como o seu, afro nos mais variado estilos – black, nagô, dreads, tranças
– conheceu pessoas com cabelos diferentes, mas que apreciavam também cabelos
como os seus. E conforme a possibilidade de cortes e penteados se ampliava em uma
variedade sem fim de alternativas, seu mundo foi ganhando também cores e
contornos os mais diversos. Foi quando um dia olhou-se no espelho e sentiu-se
feliz. Sentiu que a África era parte de si, e a Europa, a América e a Ásia, e
até mesmo a longínqua Oceania. Sentiu-se humana e viu que a beleza estava em
toda a parte, sendo contida tão somente por aqueles que preferem se limitarem aos
padrões dos que se acham superiores. Estudou sobre o racismo, sobre História da
África e entendeu que nada era por acaso e nada era natural. Nem sempre e nem muito
menos em todo lugar, ser magra e branca foi considerado bonito. Entendeu que os
padrões dominantes de beleza foram criados pelos dominadores e que estes o
fizeram justamente para oprimir e explorar. Os negros não eram então
coitadinhos de quem se deveria ter pena, eram sim pessoas em igual dignidade, mas
que foram injustiçadas por outras pessoas brancas e mesmo negras que buscaram
privilégios e não a igualdade, a liberdade e a felicidade humanas. Então...
...jogou fora
seus alisantes.
Feriado de 20 de novembro. O dia
estava lindo e ensolarado. Então, arrumou-se para encontrar seus amigos e
curtir uma bela praia. Pôs uma flor no cabelo, abriu a porta, pisou para fora,
olhou o céu e pensou: “Valeu bisavó!”.
Mariana Penna, 2013
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