quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Papai Noel desapareceu


Quando eu tinha 8 anos acreditava piamente na existência do Papai Noel. Assim como Deus, ele era uma daquelas coisas que os adultos nos contavam e que sequer passava pela minha cabeça a ideia de questionar sua veracidade. Se eles falavam que existia, para mim era certo que existia.
E era época de Natal, eu estava especialmente animada aquele ano, tanto que, pela primeira vez, pus enfeites natalinos ao redor da minha cama. Dentre eles, desenhei um Papai Noel, que eu achava lindo demais. E, com minhas irmãs, passava horas na sala em torno da árvore de natal, olhando os pisca-piscas em suas variações de ritmos e cores.
Era chegada a hora de pedir um presente ao Papai Noel. Meus pais sempre me alertavam sobre a necessidade de não pedir nada demasiado extravagante, pois o bom velhinho teria que atender a todas as outras crianças do mundo. Assim, pedia somente algo que parecesse razoável, discutindo antes com meus pais a respeito. E desta maneira fiz naquele ano. Eu desejava há muito uma boneca, uma Barbie sereia. Sonhava em poder brincar com aquela miniatura de mulher adulta numa realidade fantástica.
Brincar de Barbie era muito importante para mim, uma verdadeira libertação num mundo de tremendas limitações. Ser criança era algo demasiado desagradável, chato. Tudo o que eu desejava era poder escapar daquela forma de estar no mundo. O tempo, porém, parecia correr muito lentamente e assim nunca chegava o dia em que eu poderia ter a vida que os adultos tinham. Poder fazer minhas próprias escolhas, ter relacionamentos amorosos, sair durante a noite, ver televisão até tarde, não ir para a escola, ter altura suficiente para pegar o biscoito no armário. É, o mundo dos adultos parecia realmente fantástico! Mas enquanto o tempo continuava a pregar peças em mim, andando tão devagar que eu quase não sentia as mudanças, busquei uma maneira de mergulhar no mundo dos adultos: através das Barbies.
Naquela realidade paralela, tudo parecia possível para mim e minhas irmãs. E como, no capitalismo, a roda do consumo não pode nunca estagnar, havia sempre uma novidade para despertar o desejo das crianças, no meu caso, uma nova Barbie a combinar melhor com as fantasias que eu desejava realizar através dela como alter ego.
Mas aconteceu algo imprevisível. Eis que minha mãe chegou e me deu a triste notícia: “Papai Noel mandou avisar que não será possível te dar a Barbie sereia porque a Estrela não fabrica mais e Papai Noel não tem também como fabricar.”.
Fiquei desolada, havia criado tantas expectativas que eu não queria nada além daquilo! Senti revolta, não aceitei de forma alguma que o tal bom velhinho não me desse o presente que pedi. Como manifestação do meu repúdio, pintei no papel uma faixa em vermelho para colocar sobre a cara no Papai Noel que eu tinha desenhado com tanto carinho. Apesar da raiva, meu respeito pela figura não me permitia ainda riscar o desenho. Coloquei então cuidadosamente a faixa vermelha adesivando-a nas laterais. Não arranquei os enfeites de natal, mas escrevi bem grande e afixei um papel na parede com os dizeres: “Eu não acredito em
Papai Noel!”. E cada vez mais eu investia na negação daquela figura mítica natalina. Foi assim que, aos poucos e sem bem perceber, Papai Noel foi desaparecendo. Não havia nenhuma racionalidade naquilo, fui sendo guiada tão somente pelo sentimento de frustração. Me senti desiludida e, como uma espécie de defesa, passei a negar quem me provocou aquele sentimento. Nunca descobri que Papai Noel não existia, jamais flagrei meus pais escondendo os presentes, também não refleti nem conclui o quão absurda era toda aquela história de renas, trenó e fábrica no Polo Norte, meus pais tampouco precisaram me contar que aquilo não se passava de uma brincadeira que os adultos gostam de fazer para cultivar fantasias nas crianças. Simplesmente, após encarar a desilusão, apaguei Papai Noel da minha vida.


Mariana Penna, 2013

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O ideal culturalmente construído da ilusão


Quando mergulhei naquele lago fantástico,
Pensei que enfim chegava onde queria.
Mas a dor veio,
E não é a dor frustrada,
Sangue que escorreu do meu braço esquerdo.
Não é dor da frustração
Pela falta de afeto,
Mas a dor pelo excesso
Frustrado pelas suas conseqüências.

Mergulhei no lago,
veio a dor, a cãibra,
me engasgo com a água,
mas alcanço a margem.
Respiro fundo,
Penso em ir embora,
mas o lago e suas águas fantásticas me chamam
e novamente mergulho
e nado até a exaustão
e novamente repete-se o processo.

Afogo-me ou viro sereia?


Mariana Penna, 2007


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O vazio e a despedida

     Acordo e sinto aquele sentimento de perda que tão tardiamente me ataca. Ele vai e isso não é menos certo. E ainda que seu corpo esteja “vivo”, creio que não há mais vida ali. Se naquele instante, ali sente-se nada, assim como nada se sente em um pesado sono, que diferença faz este nada virar eterno? Pronto, acabou, terminou sua estadia. Se era alegre ou meramente eufórico, jamais saberei, mas sinto que foi feliz. Feliz, mas com rancor, mágoa de mim. E eu com mágoa dele, mágoa vil, inútil, infundada, que a não muito dissolveu-se, mas como todos sabem, o passado não se apaga. 
Queria tê-lo outra vez, mas que desta vez fossemos livres, livres de preconceitos, livres de mágoas, livres para sermos felizes, pois não há felicidade sem liberdade. Agora sim pude sentir a futura perda, o vácuo a ser deixado, a vida a esvair-se de um corpo, o quarto vazio, menos um lugar na maldita mesa de tão conservadora família. Agora sim posso chorar, agora sim posso recordar, reviver momentos, saber que não foi de tão pouca importância a passagem dele em minha vida. Espero eu que sejamos deuses para não simplesmente acabar como dissera outrora, mas não, que diferença há entre a existência e o nada? O nada tudo supre.




Mariana Penna, 2002.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Cabelos Mágicos


Foi quando entrou para a escola que se deu conta de que havia algo de errado em seu cabelo. Antes, talvez, nem tivesse se apercebido dele, que ficava aos cuidados de sua mãe. Ela os trançava, fazia marias-chiquinhas e tantos outros penteados extravagantes que as mães acham lindo fazer em seus filhotinhos. Porém, foi para a escola, e antes que compreendesse o bê-á-bá, ou mesmo a armar uma operação matemática qualquer, aprendeu que havia algo de muito errado com seu cabelo: cabelo ruim, bombril, cabelo duro, cabelo de crioula, eram algumas das coisas que aprendeu sobre ele.

E quantos desafios lhe impusera a escola! Além de ter que cortar um dobrado para aprender tanta coisa nova, descobriu que precisava travar ainda uma verdadeira batalha contra seu cabelo. E logo foram se apresentando as armas que deveria usar naquele combate: henê, alisantes vários, chapinha, bobs, creme para pentear, gel fixador... e a lista não parava de crescer. Então ela se empenhou ao máximo para corrigir aquele problema que todos em sua volta estavam sempre a apontar, mas não importava o quanto se esforçasse, o quanto investisse em produtos, seu cabelo nunca ficava bom. Mesmo quando ele parecia enfim estar parecido com um cabelo bom, logo apareciam as malditas raízes enroscadas.


Mas que raiva! Que ódio daquele defeito! O que ela inocente teria feito para merecer tão desagradável castigo? Sabia que não podia culpar a Deus, não cometeria tamanha blasfêmia! Mas se a culpa não era dele, de quem era então?

De tempos em tempos, sua mãe lhe falava de sua bisavó que teria vindo de Angola. Cedo também aprendeu na escola que Angola estava lá naquele continente pobre, sujo, cheio de doenças...

                ... negro... chamado África. E de lá veio seu cabelo, daquele continente e da sua bisavó!

Quando esses pensamentos lhe vieram à cabeça, sentiu-se culpada, sabia no fundo que não era certo. Aquelas pessoas que viviam na África não podiam ser consideradas culpadas de sua própria miséria, por sua própria infelicidade. Não, elas precisavam de ajuda, precisavam que lhe estendessem a mão para que pudessem melhorar de vida. Tudo bem, mas ainda assim...  no fundo também sentia uma repulsa a tudo aquilo. Tudo bem, sentia por eles um tipo de compaixão, pena talvez, mas... não, não queria que aquilo estivesse nela, fosse parte dela.  Não, não queria de nenhuma forma se ver como parte deles.  É, no fundo era isso, e isso era incômodo...

Dormiu, e ao amanhecer, pouco antes de despertar, sonhou. Caminhava sozinha numa rua muito clara, tão clara que mal conseguia abrir os olhos, e, com as mãos acima deles, tentava evitar o incômodo dos raios solares. Foi quando uma mulher negra apareceu a sua frente, caminhando em sua direção. Parou, e então a mulher se aproximou. Olhou firmemente em seus olhos e a abraçou... O abraço foi reconfortante e durou alguns segundos. Em seguida, a mulher disse em seu ouvido, num tom terno e compassivo: “querida, não me culpe pelo seu cabelo, nunca quis lhe fazer mal algum. Em verdade, o que lhe concedi foi um dom. Saiba que seus cabelos são um presente, pois eles são cabelos mágicos!”. A luz foi ficando mais forte e ela despertou, percebeu que deixara a cortina aberta e era uma manhã ensolarada.

Alguns anos se passaram, e ela, apesar do sonho, prosseguiu em seu ritual de tentativa de embelezar aquele cabelo ruim.

Sempre mal sucedida, pois seu cabelo parecia uma espiga de milho, tanto pelas pontas esquisitas, como pela cor desbotada que o alisante cheio de amônia gerava, dando-lhe uma aparência de mico-leão-dourado. Resolveu pintar. Mas a tinta que queria não pegou. Resolveu descolorir antes de pintar novamente. Descoloriu e novamente pintou. Foi quando percebeu que todo aquele acúmulo de produtos químicos desmanchou o seu cabelo! Quando tocava nos fios, estes soltavam e esfarelavam em suas mãos! “Que situação horrível!”, pensava ela. Não havia outra alternativa senão passar a máquina!

E foi assim que chegou ao fundo do poço da feiura capilar!

Já que pior não podia ficar e, após o trauma que indústria do embelezamento de cabelo ruim lhe havia causado, ela resolveu deixar seu cabelo crescer ao natural e ver no que dava. E ele foi crescendo assim: enroscadinho e redondinho. Após crescer uns 4 cm, quando ela olhava no espelho tinha uma inusitada sensação de “nada mal”. Comprou uma faixa bem colorida e colocou. Mas ainda se preocupava um pouco com as opiniões dos outros. Porém, começou a ouvir alguns elogios, e, por incrível que pareça, lhe soavam sinceros. Aos poucos foi se animando com a ideia, enquanto isso, deixava os alisantes guardados no armário do banheiro.

Conheceu outras pessoas com cabelos como o seu, afro nos mais variado estilos – black, nagô, dreads, tranças – conheceu pessoas com cabelos diferentes, mas que apreciavam também cabelos como os seus. E conforme a possibilidade de cortes e penteados se ampliava em uma variedade sem fim de alternativas, seu mundo foi ganhando também cores e contornos os mais diversos. Foi quando um dia olhou-se no espelho e sentiu-se feliz. Sentiu que a África era parte de si, e a Europa, a América e a Ásia, e até mesmo a longínqua Oceania. Sentiu-se humana e viu que a beleza estava em toda a parte, sendo contida tão somente por aqueles que preferem se limitarem aos padrões dos que se acham superiores. Estudou sobre o racismo, sobre História da África e entendeu que nada era por acaso e nada era natural. Nem sempre e nem muito menos em todo lugar, ser magra e branca foi considerado bonito. Entendeu que os padrões dominantes de beleza foram criados pelos dominadores e que estes o fizeram justamente para oprimir e explorar. Os negros não eram então coitadinhos de quem se deveria ter pena, eram sim pessoas em igual dignidade, mas que foram injustiçadas por outras pessoas brancas e mesmo negras que buscaram privilégios e não a igualdade, a liberdade e a felicidade humanas.  Então...


...jogou fora seus alisantes.

Feriado de 20 de novembro. O dia estava lindo e ensolarado. Então, arrumou-se para encontrar seus amigos e curtir uma bela praia. Pôs uma flor no cabelo, abriu a porta, pisou para fora, olhou o céu e pensou: “Valeu bisavó!”.


Mariana Penna, 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Flor do Amor


No silêncio do cemitério, uma velha viúva chora por seu marido falecido há um mês. Em sua humilde sepultura, marcada por uma cruz e um epitáfio sobre pedra de mármore, ela coloca lentamente, com suas mãos trêmulas, uma simples flor, um cravo vermelho.

Passada uma semana, aquele simples cravo deitado em pedra tão abiótica, começa a murchar. Enroscando-se como que um caracol, ele vai se transformando em um feto. Um pequenino feto que se desenvolve sobre aquela pedra de mármore, naquele canto abandonado do cemitério.
Certo dia, o coveiro acorda cedo e como se pressentisse, decide vagar pelo cemitério. De repente, ouve gargalhadinhas infantis e quando assombrado vê um bebezinho, se pergunta se não seria alucinação. Com um pouco de temor, aproxima-se e encanta-se com o olhar do pequenino. Pega-o no colo admirado, e só então lembra de observar o sexo do bebê.

- Meu Deus! O que é isso?

A criança não tinha sexo, e o coveiro ainda incrédulo, imagina se não seria aquele, um anjo caído. O traz para seu lar e no dia seguinte promete levá-lo para um orfanato, mas a criança o cativara e ele decide criá-la. 

Durante a primeira infância, aquela criatura assexuada freqüenta a escola sem muitos problemas. O tempo foi passando e algumas poucas vezes, ouvia perguntas sobre qual seria o seu sexo. Respondia que poderia ser o que desejasse e não compreendia porque as outras crianças estranhavam o fato dela não ter sexo. Ili tinha olhos, ouvidos e membros perfeitos, como poderia então ser considerado um deficiente?

Pouco antes de completar o primário, a professora chamou-o para conversar:

- Meu amor, esse é o seu último ano primário, você está crescendo em breve será adolescente. Quando a gente cresce, precisa tomar certas decisões. No seu caso, você precisa optar por ser menino ou menina.
A partir de então, começou a perguntar sobre as diferenças entre os sexos a seu pai e avós. Inconformada, indagava:

- Mas pai, eles só são diferentes dessa forma porque os ensinaram a ser assim!

O pai ficava por vezes furioso com sua intransigência para com a escolha do sexo. Até que chegou a um ponto em que ele desistiu. Consciente de que tal criatura só poderia ser um anjo, leva-o ao padre, que maravilhado o encaminha ao catecismo.

Um mês antes da primeira comunhão, chega Ili ao padre:

- Não posso comungar. Gostei muito de Jesus, ele parecia realmente amar as pessoas, chegando até a contrariar valores sagrados para a época. Mas de qualquer forma, no geral, o seu Deus, principalmente no Antigo Testamento, é orgulhoso e vingativo. Além disso, em toda a Bíblia prega-se a superioridade do homem sobre a mulher. E também não compreendo esse tipo de amor que seu Deus diz ter pelos homens, o qual os obriga a entregarem-se a ele, adorando-o e vivendo para o reverenciar. Para mim isso é egocentrismo e egoísmo, não é amor.

Anjo, portanto, Ili não era, mas sua ternura anulava a possibilidade de ser um demônio. E a questão do sexo continuava sem ser resolvida.

Crescia então, diferente dos demais e por isso mesmo começou a sentir a repulsa de seus colegas. Afinal Ili não podia entrar no grupo das meninas, nem dos meninos. 

Foi quando Ili decidiu omitir seu assexualismo. A partir de então, tudo começou a dar certo. Para as garotas, Ili era uma delas, para os garotos, um deles.

Apesar de muito sensível e amoroso, tinha uma personalidade forte e era contestadora, não conseguindo se calar perante uma injustiça. De inteligência acima do normal, tinha uma visão sobre o mundo mais ampla que a maioria. Não suportava a discriminação e odiava ver as pessoas subjugadas. Essas características fizeram com que atraísse muitas pessoas, que gostavam de estar em sua presença.

Era um andrógino perfeito, não tendendo para um lado nem para o outro. E como desfrutava de grande beleza física e de um encanto sobrenatural, atraía os olhares de muitos. Isto era recíproco porque Ili se apaixonava a cada dia mais e mais pelas pessoas que cruzava. Via beleza em todos e a todos queria conhecer e amar.

Fez muitos amigos e com eles sentia-se completa, amava-os profundamente e assim como naqueles momentos em que estavam juntos, queria ser feliz ao lado deles para sempre.

Já estava com quatorze anos quando deu seu primeiro beijo. Beijou um garoto a quem muito amava. No entanto descobriu que era amada de forma diferente. O garoto dizia ser seu namorado e a queria só para ele. Mas ili o amava como a seus outros amigos e o beijara porque ele assim o desejou.

- Eu lhe amo, mas não entendo como pode me amar desta forma obsessiva. Não entendo porque diz que por amor a você não posso beijar outras pessoas e não aceito a ideia de que devo lhe amar acima de meus amigos, simplesmente por lhe beijar e a eles não.

 Inconsolável, o garoto foi embora com os olhos rasos d’água. Ili sentiu remorsos por isso e desde então não quis beijar mais ninguém.
No entanto, passado algum tempo, uma garota se apaixonou por Ili e disse querer entregar seu corpo e sua alma a ele. Retrucou dizendo-a que amasse a ele e ao mundo, pois ela seria bem mais feliz se não se restringisse a amar uma só pessoa. Foi respondido com um tapa e um:

- Safado, nojento, tá me chamando de piranha?

Outras experiências como estas sucederam, mas de qualquer forma Ili tinha a seus amigos os quais amava e era amada. Eles eram para Ili a materialização da felicidade e suas palavras tocavam sua alma tão profundamente que a cada dia se sentia por eles mais apaixonado.

Compartilhavam idéias, roupas, sonhos, biscoitos, receios, abraços e por vezes até beijos descompromissados. Em sua mente, nada no mundo podia os afastar. 

Mas aconteceu o inexplicável, apesar de tanto amor compartilhado, um a um, seus amigos foram amando mais a uma pessoa exclusivamente. Aquele sentimento que antes era igual para todos e tinha valor máximo, era agora secundário.

Agora, eles começaram a sair mais vezes com uma pessoa apenas e contavam a todos como amavam aquele ser acima de qualquer outro. E aquilo parecia muito normal para a maioria das pessoas, mas para Ili não era.

Sua felicidade plena fora quebrada, não conseguia entender como o simples fato de ter relações sexuais com uma pessoa faria dela tão superior com relação às outras a ponto da primeira estar no topo da hierarquia sentimental. Era impensável para Ili um casal morar junto, viver uma para o outro, abandonando quase que completamente o resto do mundo. 

Sentia-se dia após dia mais abandonado. As ligações eram cada vez menos freqüentes, assim como os passeios, tendo ainda o desprazer de ocasionalmente ver casais de seus amigos passarem por Ili caminhando só pela cidade.

Estava agora sozinha, deixado para trás. E foi então que decidiu se recolher em seu quarto. Deitada em sua cama refletiu sobre a possibilidade de ser como os outros e por mais que tentasse aceitá-la, amava demais para isso. Amava tanto que preferiu desistir da vida a ver seu amor não ser correspondido. Queria todos de forma igualmente intensa, mas acabou sem nada.

E então adormeceu, e pouco a pouco seu corpo foi encolhendo, contorcendo, até que dentre aquele lençol amarrotado, restasse apenas uma semente.


                                                                                                                                              Mariana Penna, 2003

              
                    

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A sabedoria vivendo na rua


           Ao passar embaixo do viaduto da Pinheiro Machado, em Laranjeiras, uma cena me chamou a atenção: um homem de meia idade com aparência de mendigo estava deitado num banco, de barriga para cima, tinha o braço esquerdo levantado para segurar uma folha na altura de seu rosto, e na mão direita, uma caneta a escrever nessa folha.
Eu ainda estava um pouco longe quando o avistei. Visão tão exótica inspirou um mundo de pensamentos a assaltarem minha cabeça, fazendo dela refém por alguns segundos. Logo me veio em mente um caso talvez semelhante, um aparentemente louco petropolitano que perambula pela cidade a escrever em seu caderninho secreto. Esse homem misterioso de tempos em tempos habitava meu imaginário, e da mesma forma, a figura do viaduto me abordou. Seria ele um intelectual mendigo? Filósofo cuja sabedoria tão profunda não pode ser compreendida por uma sociedade capitalista tão alienada e alienadora? Sim, minha visão romântica o fez um gênio, um homem letrado numa posição em que um analfabeto era esperado. Ele era uma exceção, um ser especial, sem dúvida diferente, o qual mesmo tendo vivido na total adversidade, desenvolveu habilidade escrita e filosófica além do comum, nunca esperadas em uma classe forçada a viver abaixo da subordinação e ignorância. E justamente por ter esses conhecimentos, ele negaria toda riqueza, indo ao extremo de viver dos restos materias da sociedade, negaria qualquer manifestação de orgulho próprio, vivendo na mais baixa camada do status social na qual ele não pode ser percebido pelos outros, a menos que por acidente! Sim, e por acidente eu poderia ter acesso ao que ele escrevia para si mesmo, como em um diálogo entre a dualidade de cada ser. Sim, ele nem ao menos escrevia para ser lido, tão gradiosa alma não ostentaria tal aspiração, o filósofo-mendigo não teria qualquer arrogância, não pensaria em poder ensinar algo a alguém. Não, nenhum poder, negação total ao poder!
E eu me aproximava, louca de vontade de poder ler ao menos uma linha do que ele escrevia. Uma linha, pensava eu, que me valeria uma semana de reflexões. Uma linha escrita por um mendigo, mas que poderia superar a de muitos que têm formação universitária. Eu poderia até me sentir pequena ao me defrontar com a verdade, com a profundidade da frase.
E a ansiedade aumentava, meus olhos curiosos se aproximavam da folha na qual ele escrevia. E finalmente, com um pouco de meu esforço míope pude ver o inesperado: ele não escrevia! Em vez disso, encontrei desenhos, desenhos simples iam ocupando toda a extensão da folha, preenchendo todo espaço vazio. A simplicidade deles me admirou ao contrastar com a complexidade aparente que eu esperava... eram corações. E o olhar do mendigo era doce e feliz.





                                        Mariana Penna, 2003

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Infecção Viral

           “Tento dormir, mas é difícil. Se deito virado pro lado esquerdo, meu nariz esquerdo entope, se viro pro lado direito, é a vez do direito entupir. Na minha garganta sinto um misto de coceira e ardência. O tempo inteiro me pergunto: quando essa gripe horrível vai embora?”
            E Fulaninho continuou pensando em seu estado, até o efeito de um exaustivo dia de trabalho abaixo de febre, o fazer adormecer. Mas enquanto Fulaninho dormia seu sono nada confortável, muitas coisas as quais ele não fazia ideia de que aconteciam, operavam em seu corpo...

            - Oh merda! Lá vem chegando esses agentes externos pra ditar as regras de como nossa comunidade deve funcionar! – bradava Complexo de Golgi.
            - Pois é, mas fazer o que se os núcleos seguem as regras deles acreditando no melhoramento da produção celular? Eu não acredito, e pra falar a verdade, já ouvi dizer que algumas células inteiras foram destruídas devido ao excesso de produção do material estrangeiro, e para o estrangeiro! – disse um pequeno Lisossomo.
            - Exatamente Lisossomo, esses Vírus não tem nenhum respeito pelos locais, vem aqui só tirar proveito, inibem a nossa produção e passam a realizar a deles, sem ter o menor conhecimento das nossas necessidades, e depois ainda corremos o risco deles nos consumirem até a exaustão, vão embora nos deixando a mercê das Enzimas e seu trabalho funesto de livrar-se dos nossos corpos mortos.
            - Ai Complexo de Golgi e Lisossomo, me admira vocês terem uma ideia tão distorcida dos últimos acontecimentos! O que eu sei é que os agentes externos melhoram a vida de muitas células por aí, nós ficaremos no subdesenvolvimento para sempre se eles não vierem nos dar uma mãozinha. Eu até reconheço o fato de alguns Vírus não serem muito éticos, mas estes estão sendo identificados e será exigido que melhorem sua ação, mas ainda assim, a atuação deles não é tão negativa, já que isso dá trabalho aos Leucócitos que andavam meio inativos faz um tempo atrás.
            - Logo se percebe o quanto Senhor Centríolo está engando – disse Mitocôndria, trabalhadora da área de produção de energia – os Leucócitos estavam bastante ativos realizando a limpeza cotidiana do Organismo, agora estão como loucos tentando reduzir os estragos causados pela ação dos vírus. E espero eu que parte dos Leucócitos sigam de forma mais radicalizada, e expulsem logo esses vírus do Organismo.
            - Você Mitocôndria, é uma radical acrítica! Esses Leucócitos loucos os quais tanto admira, ao invés de realizarem seu trabalho estão agindo contra o avanço do Organismo, e eles sim devem ser impedidos antes de provocarem reais estragos no sistema como um todo. Vocês não entendem que para progredir precisamos de algum sacrifício, e sejamos realistas, a produção aumentou enormemente nas Células onde esta passou a ser gerida pelos Vírus.
            - A única questão, e que você esquece de mencionar, é qual a utilização dessa produção, e o porquê disso nos trazer algum avanço! Afinal toda a produção tem por função única expandir o Império dos Vírus por outras células!
            - Mas vocês não têm paciência, a melhora vem aos poucos, em breve poderemos reconhecer os resultados!
            E a reunião dos Vírus com o Núcleo Celular chegou ao fim. As organelas ansiosas aguardavam Núcleo proclamar a decisão. E assim foi feito:
            - Depois de uma longa conversa com os Senhores aqui presentes, decidi que será vantajoso para toda a comunidade aderir ao sistema de produção que os Vírus me propuseram.
            As organelas se manifestaram, agitaram-se, contestaram. O Núcleo pediu calma e em seguida passou a explicar as tais vantagens que a associação traria. Os argumentos não foram muito diferentes dos argumentos de Centríolo, mas foi Núcleo, o administrador central quem os disse. Aos poucos as Organelas se acalmaram e a paz voltou a reinar na célula, algumas é claro persistiram com sua rebeldia, não podendo, no entanto, lutarem sozinhas.


            Mas Fulaninho acordou, ainda era quatro horas da manhã e ele só precisaria levantar às cinco.
         “Cof, cof! Arrrrghh! Chiiiiiinn! Eca! Grande merda essa gripe! Tomara que meu corpo consiga se liberar o mais cedo possível, antes que eu precise faltar e ser descontado no serviço! Ah! Droga, febre! Por isso meus olhos parecem pesados! Vou tomar um antitérmico rápido, pois talvez ainda haja tempo de baixar a temperatura”.
            E passadas duas horas Fulaninho se sentia um pouco melhor, já vestido em seu uniforme, tomou o ônibus para a fábrica da Nestlé, onde trabalha na área de limpeza.




                                                                                                     Mariana Penna (2004)